CRÉDITOS - JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO - versão
online (Acesse www.folha.uol.com.br)
BERNARDO MELLO FRANCO
FABIANO MAISONNAVE
FELIPE SELIGMAN
ENVIADOS ESPECIAIS A ROMA
O argentino Jorge Mario Bergoglio disse neste sábado, no
primeiro encontro com jornalistas desde que assumiu a chefia da
Igreja Católica Romana, que escolheu o nome papal de Francisco
por influência do cardeal brasileiro dom Claudio Hummes, 78.
"Na eleição eu tinha a meu lado o arcebispo [emérito] de São
Paulo e prefeito emérito da Congregação para o Clero, o cardeal
Claudio Hummes, um grande amigo", contou o novo papa. "Quando a
coisa começou a ficar perigosa, ele começou a me tranqüilizar e,
quando os votos chegaram a dois terços, e aconteceu o aplauso
esperado --pois, afinal, eu havia sido escolhido o papa, ele me
abraçou, me beijou e disse 'não se esqueça dos pobres'. Aquela
palavra entrou na minha cabeça. Os pobres."
Hummes e Bergoglio, 76 --ex-arcebispo de Buenos Aires--, foram
ordenados cardeais juntos, por João Paulo 2º, em 2001. O
brasileiro apareceu ao lado do argentino no momento em que ele
foi apresentado como papa aos milhares de fiéis que aguardavam
pelo anúncio, na praça de São Pedro, no Vaticano.
FABIANO MAISONNAVE
ENVIADO ESPECIAL A ROMA
Folha - O sr. foi convidado pelo papa Francisco a estar ao
seu lado na primeira aparição. Como é a relação entre vocês?
D.Claudio Hummes - Nós nos conhecemos de tantas oportunidades,
porque fui arcebispo de São Paulo, e ele, arcebispo de Buenos
Aires. Mas sobretudo foi em Aparecida (SP) onde estivemos mais
tempo trabalhando juntos, na 5ª Conferência Latino-americana, em
2007. Existia ali a comissão da redação, a mais importante
porque ali que se formulava o documento para depois ser votado.
Ele era o presidente, e eu, um dos membros. Admirei muito a sua
sabedoria, serenidade, santidade divina, espiritualidade. Muito
lúcido e muito pastoral, grande zelo missionário, de querer que
a igreja seja mais evangelizadora, mais aberta.
Como foi o convite para o balcão?
Quando se começou a organizar a procissão da Capela Sistina para
o balcão na praça, ele chamou o cardeal Vallini, que faz as
vezes do bispo de Roma, o vigário da cidade, e me chamou também.
Disse: "D.Cláudio, vem você também, fica comigo neste momento".
Disse até: "Busca o teu barrete [chapéu eclesiástico]", bem
informalmente. Fui lá buscar o meu barrete e estava todo
feliz....
Porque não é o costume, quem vai junto são os cerimonários,
nunca tem cardeais com o papa, eles estão nos outros balcões. E
o fato de que ele nos convidou acabou rompendo um monte de
rituais. Mas foi realmente, para mim, muito gratificante. E
também pelo fato de ele ter recém-escolhido o nome de Francisco.
Eu sou franciscano, então isso me envolvia muito pessoalmente.
Como o sr. interpreta esse gesto?
Como um gesto pessoal dele, muito espontâneo, muito simples. Não
sei quais os significados que ele queria dar. Eu digo que fiquei
muito feliz, estava ali com o primeiro papa chamado Francisco.
O papa recusou a limusine, foi pagar a conta do hotel....
São gestos simples, mas que mostram quem ele é e como ele vê as
coisas. A minha maravilha foi que esses gestos foram
compreendidos pelo povo simples e pela mídia. A mídia também
interpretou esplendidamente, entendeu as mensagens que o papa
queria dizer.
Qual é o significado de ter um papa de fora da Europa depois
de mais mil anos e além disso latino-americano?
Os outros papas que não foram exatamente europeus vinham da
região do Mediterrâneo. Nesse sentido, era a Europa da época,
era uma grande realidade geopolítica.
Mas o fato de que hoje venha um papa de fora da Europa tem um
significado muito grande porque mostra o que a igreja sempre tem
dito: a igreja é universal, para a humanidade. Não é para a
Europa.
Ter um papa é o sinal maior. É o gesto de dizer: o papa pode vir
de qualquer parte do mundo.
Também acho importante que tenha vindo da periferia ainda pobre,
emergente. Isso é uma confirmação para todos os católicos de lá:
"Nós temos um papa que vem daqui".
E não só para os católicos, até os países se sentem muito mais
em pé de igualdade com os outros.
São Francisco também é lembrado pela missão de reformar a
igreja como um todo. A escolha do nome também tem essa
abrangência?
Certamente, para o papa, o nome é todo esse programa. Hoje, a
igreja precisa, de fato, de uma reforma em todas as suas
estruturas. Organizar a vida da igreja, a Cúria Romana, que
tanto se falou e que precisa urgente e estruturalmente ser
reformada, isso é pacífico entre nós. Porém uma coisa é entender
que precisa ser feito e outra coisa é fazê-lo.
Será uma obra gigantesca. Não porque seja uma estrutura
gigantesca, mas por um mundo de dificuldades que há dentro de
uma estrutura como essa, que foi crescendo nos últimos séculos.
Alguém disse já que a escolha do nome Francisco já é uma
encíclica [mensagens do papa à igreja], não precisa nem
escrever. Isso é muito bonito, é muito promissor.
Em que sentido a reforma é necessária?
Não é só da Cúria, são muitas outras coisas: o nosso jeito de
fazer missa, de fazer evangelização, essa nova evangelização
precisa de novos métodos. O papa falou no encontro com os
cardeais sobre novos métodos, nós precisamos encontrar novos
métodos.
Mas se falou sobretudo da Cúria Romana, que precisa ser
reformada estruturalmente. É muito grande, mas tudo isso precisa
de um estudo, a gente não tem muitas coordenadas.
Muitos dizem que é grande demais, que foi feito um puxadinho
aqui, um puxadinho lá, mais uma sala aqui, mais uma comissão lá,
mas essa aqui não tem suficiente prestígio.... Essas coisas
todas que acontecem numa estrutura dessas.
A igreja não funciona mais. Toda essa questão que aconteceu
ultimamente mostra como ela não funciona. E depois, uma vez
feito esse novo desenho, você tem de procurar as pessoas
adaptadas para ocuparem esses cargos, esses serviços.
Reza a lenda de que o papa Francisco não gosta de vir a Roma,
que sua formação foi longe daqui. Isso contribuiu para a sua
escolha?
Não sei se contribui para a sua escolha, mas contribui agora,
que ele é papa, a ser mais independente, a ser uma visão mais
objetiva. É muito diferente ver um jogo da arquibancada e ver um
jogo jogando futebol. Ele não jogou futebol. Vai ajudar,
certamente.
Mas ele também vai ouvir pessoas que jogaram, porque é
importante ouvir do jogador como ele viu o jogo e quais são as
necessidades dentro da forma como se joga.
Continuando a metáfora, o sr. jogou aqui por quatro anos e já
foi convocado por ele. O que o sr. pode dizer a ele sobre o que
precisa ser feito?
Se um dia me perguntarem sobre isso... Claro, todos nós já
falamos sobre isso nas congregações gerais [reuniões
pré-conclave], em que ele estava presente. E estamos disponíveis
sempre pra ajudar e precisamos ajudar. Os cardeais são o
conselho que deve ajudar o papa.
Há relatos na imprensa argentina sobre o envolvimento --por
omissão ou colaboração-- do papa Francisco com a ditadura
militar. O que tem sr. pode falar sobre isso?
Certamente, isso não é real. Pode ser que alguém tenha se
equivocado em certos discernimentos, mas conhecendo toda a
pessoa dele.... Não conheço os detalhes, mas, conhecendo a
pessoa, nem é possível imaginar isso. Ele é um homem
extremamente dos pobres, dos direitos da gente, dos mais
simples, dos mais oprimidos, dos mais humilhados, ele é um
exemplo de defesa, de estar junto dos pobres.... É inimaginável.
Tenho certeza de que tudo isso de fato é um grande equívoco,
senão uma falsificação.
A igreja no Brasil, incluindo o sr., teve um papel muito
importante na defesa dos direitos humanos durante a ditadura.
Como isso se deu na Argentina, sem levar em conta o papa
Francisco?
As igrejas pelo mundo afora tiveram as suas próprias avaliações
e seu próprio modo de ser. Não me sinto autorizado para fazer um
juízo sobre a igreja nesse ou naquele país.
Fala-se muito que a herança da Teologia da Libertação para a
igreja na América Latina é o discurso em favor dos pobres. No
caso do papa Francisco, qual é a relação dele com esse
movimento?
Basta olhar como ele foi arcebispo em Buenos Aires e o documento
de Aparecida, que diz tudo isso. Ele está nessa linha,
certamente. Se a gente quer descobrir qual é a linha dele de
pastoral social, de relação com os pobres, nós vamos encontrá-lo
lá, sim.
A Teologia da Libertação foi uma fase histórica que, obviamente,
tem essa questão da consciência que temos dos pobres e da
necessidade de sermos solidários em termos construtivos da
justiça social. Tudo isso a Teologia da Libertação também
reforçou.
Eu acho que hoje, se a gente quer ver como as pessoas se
relacionam com esse passado, é preciso olhar os documentos de
hoje. Senão, você começa a transportar o passado, que não é mais
uma resposta para hoje. O mundo já mudou, e as respostas são
diferenciadas.
A primeira viagem do papa deve ser ao Brasil, onde a igreja
enfrenta desafios muito grandes, como a evasão de jovens e o
avanço das igrejas neopentecostais. O sr. tem uma ideia do que o
papa pretende orientar sobre o futuro da igreja no país?
Ainda não transpirou nada sobre as mensagens que ele vai levar,
mas a gente sabe, tem certeza de que ele vai falar, em primeiro
lugar, da importância dos jovens, de que devemos estar do lado
dele, devemos ser compreensíveis. Ele quer que a igreja seja
compreensiva, misericordiosa, saiba caminhar juntos e que isso é
um percurso que tem de fazer, não se pode exigir que amanhã
alguém já seja um cristão perfeito. É um caminho, um processo.
É dar a certeza aos jovens de que a igreja os entende e quer
acompanhá-los e também quer mostrar a luz. Quer dizer: "Prestem
atenção, existe, sim, um sentido para a vida, existe alguém pelo
qual vale a pena viver e dar a vida. Há alguém, que é Jesus
Cristo, ele é uma luz que vocês deveriam seguir." Isto é, não
deixar de mostrar o caminho, mas, ao mesmo tempo, ser
compreensivo de onde o jovem ainda está nesse caminho.
E depois a nova evangelização certamente será um outro tema
forte dele.
Desde o Concílio Vaticano 2º, há um grande esforço para o
diálogo interreligioso, principalmente com as religiões mais
antigas. No caso da América Latina, como é o diálogo neste
momento entre a igreja e o neopentecostalismo, que não para de
crescer?
O diálogo ecumênico com as outras igrejas cristãs não católicas
existe de forma muito forte, sobretudo a partir do Concílio
Vaticano 2º. Com as grandes igrejas: ortodoxa, oriental, as
igrejas protestantes de origem luterana, calvinistas, que são
igrejas históricas. Mesmo com o judaísmo, há um grande diálogo.
E também com o islamismo, mas isso é outro setor porque, para
eles, Jesus Cristo não é como para nós cristãos. Esse diálogo é
lento, mas vai caminhando.
Com as igrejas neopentecostais, onde existe muito uma teologia
da prosperidade, se dá muito acento ao exorcismo, ao dízimo e
coisas assim, elas se diferenciam das igrejas pentecostais. Mas
tanto uma com a outra são muito semelhantes. Com elas, é mais
difícil, porque muitas delas simplesmente não aceitam o diálogo,
mesmo se nós quiséssemos dialogar. Porque não aceitam pensar
numa unidade um dia. E muitas vezes são agressivamente
anticatólicas, então é muito complicado.
O sr. já é emérito, mas vai ficar no Vaticano em alguma
função?
Não, não, eu vou ficar aqui até o dia 22, vou participar da
cerimônia pública religiosa e vou participar de uma reunião no
dia 21. E aí volto para os meus trabalhos.
Há relatos na imprensa italiana de que o sr. contribuiu
durante o conclave para eleger o papa Francisco. O sr. confirma?
Tudo o que aconteceu dentro do conclave, eu não posso falar.
Voltando ao seu trabalho na cúria, de 2006 a 2010, na
Congregação para o Clero, houve uma entrevista em que o sr.
falava que o celibato era uma questão disciplinar e que, por
isso, estava aberto à discussão. O sr. teria sofrido uma
reprimenda quando chegou ao Vaticano. Está na hora de questões
como celibato e a ordenação de mulheres serem menos ortodoxas?
Isso de reprimenda, você é quem está dizendo. Eu apenas digo que
todas essas questões, todos esses desafios hoje, grandes
questões que estão aí em aberto, a igreja não se fecha a
discutir aquilo que é necessário ser discutido, ser aprofundado.
E isso significa uma igreja capaz de dialogar, capaz de ouvir,
capaz de aprofundar, discutir e procurar caminhos. É o que ela
vai fazer, certamente.
E esse papa é muito aberto a ouvir. Ele mesmo disse que quer
ouvir o mundo, e não só os cardeais e os bispos.
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